domingo, 20 de setembro de 2009

Conto: A moça

A Grande São Paulo sempre foi um lugar de muitas historietas, novelas e crônicas, desde outros tempos colonizadores portugueses já viviam muitas delas entre os tupiniquins que, por sua vez, também em outras eras, viveram as suas, sendo que, a maior delas é a própria presença deste povo estrangeiro, de mau cheiro, de corpos vestidos, usando bigodes e barbas, portando nos lombos brancos armas de fogo e espadas, conspirando, invadindo, tomando a sua terra, mas isso é outra história.

Quem, neste imenso chão paulista, não viveu uma historieta significante em uma das múltiplas linhas do metrô ou trem? Ou em um dos milhares de coletivos que transitam pela “megatrópole”? E ainda, o que dizer então das inúmeras ruas, praças, igrejas, bosques, becos, vilas e bairros? Parecem eles não terem fim, tanto as historietas como a grande cidade.

Nesta “cidade-mundo” há milhões de personagens, seria impossível a qualquer contador de histórias, escritor, poeta, ou qualquer outro contar as bilhões de historietas que acontecem na Grande São Paulo, entretanto há pessoas que não deixariam de ler ou de escrever algumas delas. Algumas pessoas, por obrigação talvez, como os jornalistas que as escrevem todos os dias e há outras quem as fazem por encanto, como os poetas e ainda há outras pessoas que as contam ao chegarem em suas casas.

Era isso que Tristão fazia ao chegar cansado do trabalho em sua casa. Ele abria o velho portão enferrujado e enguiçado, o que anunciava sua chegada à esposa e aos cachorros que imediatamente vinham ladrando e abanando o rabo, olhava meio desconfiado a caixa de correspondência e de lá tirava um punhado de anúncios de supermercados, algumas cartas e um amontoado de minúsculas folhas do antigo carvalho que abrigava o casarão da família Bento Souza. Entrava quintal adentro e na porta limpava cuidadosamente as solas dos sapatos no capacho centenário, depois conversava com o cachorro, puxava uma cadeira e sentava na varanda por alguns instantes.

Logo a esposa vinha cumprimentá-lo, beijava-o com o beijo costumeiro e frio, depois entrava e o chamava para o jantar. A comida era freqüentemente a mesma todos os dias, a não ser na sexta, pois ele fazia questão de comprar algo diferente na casa do norte de Norberto, uma deliciosa costela assada era seu prato preferido, porém naquela terça fria e melancólica era arroz, feijão, batatinha, salada e um bife sola de sapato esturricado.

No banheiro, Tristão lavava suas mãos e num rápido movimento levantava a cabeça para dar uma espiada pela janela, estava sempre vigiando se a moça vizinha, beldade de mulher, estava no banho para espiá-la. As janelas dos banheiros davam de encontro no corredor, ficavam de frente uma para outra, mas a de Tristão era um pouco mais alta. O safado botava a cabeça, olhava para baixo e se retirava rapidamente para não ser pego. Era uma possessão, um desejo ambicioso, pernicioso, até mesmo ilícito que o fazia espiar. Não era voyeur, mas estava com um desejo imponderável de altíssimas proporções pela moça, era uma praga e ao mesmo tempo um deleite concupiscente.

Feito o pretexto de lavar as mãos, pois sempre inventava uma desculpa para ir ao banheiro espiar, voltou à cozinha, a moça não estava e por isso voltou logo. Sua mulher, que pra ele mais parecia uma empregada, servia o jantar. Comeu distraidamente sem interesse algum pelo alimento, pois estava concentrado em vigiar, a qualquer momento a moça poderia entrar, assim não desviou o olhar do banheiro, estava com a audição aguçada a qualquer pingo d’água e a sua mente sempre repleta de pensamentos pecaminosos. Sua mulher não desconfiava de nada, comia com prazer a comida que fizera, mas para Tristão o jantar lhe desceu como uma coisa sem valor e nem vira bem o que comera por causa da perturbação e a vigia.

Ainda à mesa, começou a contar o dia-a-dia como já era costume, pois era assim que a mulher gostava, ele já tinha entendido isso, então passou a fazer-lhe gosto, se bem que ele também gostava. Sempre com um pretexto perguntava a sua mulher sobre o cotidiano, em seguida perguntava do cunhado e depois da vizinha que era amiga de Ana sua mulher. As informações eram fatigantes e vagas, mas o que vinha a respeito da moça era sempre delicioso e novo.

A mulher se levantou abriu a geladeira e tirou uma travessa, ele ameaçou se levantar para ir espiar, mas logo a mulher serviu gelatina de morango que era a sua preferida. Ela fazia uma espécie de suflê, dissolvia a gelatina em creme de leite quente depois batia, aquilo ficava uma delícia segundo sua opinião. Repetia sempre três vezes... Depois, saciado, arrastava-se até o sofá e imediatamente cochilava.

Enquanto dormia, Ana entre o som de roncos absurdos, arrumava a cozinha e depois tomava um longo banho relaxante, passava óleo pelo corpo e às vezes cantarolava bem baixinho no banheiro, pois tinha vergonha da voz de taquara rachada, nem sempre lavava os seus longos cabelos, mas quando o fazia a demora aumentava quase em uma hora. E era o dia. Arrumava o xampu, o creme e sua touca enquanto o vapor inundava o banheiro, depois passava o creme de ponta a ponta, cheiroso, gostoso, bem lentamente, acariciando os belos cabelos e de tal modo que o perfume se exalava por todo ambiente do casarão dos Bento Souza.

Enquanto Ana banhava-se, um barulho muito curioso no corredor, do lado de fora da casa, parecia vir do banheiro do vizinho, Ana sem conter-se de curiosidade deu uma olhadela pela janela. Era o vizinho e sua empregada nus em pêlo! Pareciam banhar-se felizes entre beijos e carícias. Os vizinhos sempre deixavam as janelas entreabertas, assim Ana assistiu tudo pela fresta na sua janela, pois sempre as fechava e muitas vezes colocava uma toalha para evitar de ser vista. Ana chocou-se com àquela visão, apesar disso logo, e de súbito, lhe subiu um calor sexual como nunca antes pelo marido, tanto foi que se excitou muitíssimo.

O vizinho irmão da moça, mulherengo, havia tempo que estava de olho nas pernas da empregada e naquele dia aproveitou a oportunidade, pois sua irmã havia saído, então se engancharam no banheiro. Ana nunca pensou em trair o marido e logo sentiu uma culpa pesada e deixou de olhar, desligou o chuveiro, se enrolou na toalha, contudo antes de sair titubeou um pouco, voltou a olhar e em seguida saiu correndo.

Ana passa pela sala toda agitada e bate com um soco sêco na pança do marido:

- Acorda seu morto! Você precisa ter mais energia! (Pensava Ana, energia como o vizinho.)

Ana puxa sua toalha fica nua no meio da sala e o calor volta acendê-la, pois lhe vem a lembrança o fato erótico, mas Tristão assustado com a atitude de Ana e com sono não se anima. Então, em ato de desespero, Ana agarra-o, beija-o com ímpeto. Ele se levanta agarra-a também, beija-a com robustez e passam juntos uma noite de amores como nunca antes. Ele só pensando na moça e ela no episódio erótico que acabara de assistir. Foi uma noite quente de desejos cúpidos e concupiscentes de alto ardor, mas de infinito encanto para os dois.

No dia seguinte... Tristão se espreguiça na beira da cama:

- Ahh! Que boa noite de sono!

- Que pena que não é assim todo o dia, não é querido?

Que encanto! Que pegada!

- É verdade, faz tempo que nós não temos uma noite assim.

Relembrando a noite os dois são tomados de novo de um súbito ardor sexual e recomeçam aquelas atividades noturnas de casais apaixonados, quase sempre noturnas, pois os jovens de hoje, claro, desprezam totalmente este protocolo. Na empolgação Tristão perde a hora e, além disso, se esquece: É dia de uma reunião importante com o chefe. Fica estapefado e sai feito doido pela casa. Enrosca-se nas cadeiras, derrama o leite, pisa o rabo do cachorro, se enrola todo e, depois de tudo, perde o ônibus da firma...

Duas horas depois.

Chegando na firma é avisado a comparecer na administração. Na sala a secretária como se fosse um robô orienta-o:

- Sr. Tristão é lamentável que tenha chegado atrasado e não tenha participado da reunião com o chefe do seu setor. O senhor entende que sem uma justificativa pelo contrato isso é imperdoável e por essa razão o chefe poderá te demitir. Então não lhe resta mais nada a não ser trabalhar o restante do dia e depois esperar para assinar sua demissão. Sinto muito!

Foi dito e feito. Ao entrar na sessão o chefe o chamou a parte. Estava com uma cópia do contrato na mão e o avisou que seria demitido caso não tivesse uma justificativa. Aponta com o dedo para o contrato. Era uma empresa que levava à risca a disciplina. O chefe com raiva aparente bradou:

- Ô rapaz, porque você não apareceu? Tristão fica calado.

Você sabe o que está no contrato... e ainda com esta crise na empresa! O que você está querendo? Não dá pra mexer pauzinhos desta vez. (Fala debochando.)

Vou ter que demiti-lo.

- Mas Mene passo no médico e peço o dia. Além disso, já aconteceu isto outras vezes e você liberou.

O chefe muda o tom e um pouco mais brando diz:

- Sinto muito companheiro, os caras estão me apertando e essa de médico tá manjado. Sabe a pauta da reunião?

- Mmm...

- Era sobre a crise, vamos ter de cortar horas e remanejar tudo, (Volta o tom imperativo de “chefe onça”) ai você me dá uma bola fora dessas. Pô cara! Vou ter de demiti-lo! Sinto muito! Além do mais já havíamos discutido uma lista de cortes na empresa e você já estava nela, portanto rua.

Tristão não teve fala. Saiu mudo.

Assinado os papéis Tristão sai inconsolado. Anda sem rumo, perambulando pela rua, horas depois entra no shopping, dá umas voltas e quem encontra? Ela. A moça. Na hora que a vê até esquece de tudo. Empolgado chega até ela, seu coração pulsa alentado e até parece que ela sabe que ele fica cobiçando a sua nudez na janela do banheiro e veio tirar satisfações, tal é o pulsar do seu desejo.Cumprimenta e a beija. Arfante e até gago diz:

- Oi mo...ça... bo..ni...ta, que... faz por a...qui?

- Oi Tristão, como vai! Que surpresa você aqui. Está de folga hoje?

Ele lembra e se entristece.

- Folga qui nada, acabei de ser despedido.

- Sinto muito amigo, mas esquenta não, logo você arruma outro emprego e depois você ainda tá novo.

Moça fala assim para animar o pobre. Ele se assanha e cresce-lhe os olhos e cobiça-lhe os peitões. Só mesmo esta moça pra fazê-lo esquecer tão duro golpe.

- E você como sempre está exuberante! Formosa!

Gostosa, pensa Tristão.

- É meu filho tenho que estar arrasando quando venho aqui no shopping. É a lei do shops.

- Puxa que legal encontrar você. Que tal almoçarmos juntos hoje? Topa?

- Demorô!

Tristão entrou num clima de devaneios, passou a tarde inteira no shopping bajulando aquela beldade morena jambo de pele macia sem nenhum defeito, pernas bem torneadas como uma fina madeira de canela , corpo escultural, uma Vênus de Milus, seios redondos e empinados totalmente gêmeos apertados num lingerie tão gostoso quanto os próprios seios, lábios carnudos suculentos como uma fita vermelha de seda que faziam palpitar o coração do pobre Tristão, os cabelos pretíssimos da cor do ébano e ônix, encaracolados, cheirosos e brilhantes pareciam a teia de uma viúva negra donde jamais sairia Tristão. Sua nuca era a parte que mais desnorteava Tristão, era inexplicável o poder que os cabelos finos do pescoço tinham, lhe provocavam um tremor desde a base da virilidade, até a ponta da machidão, ainda lhe subia pelo corpo uma espécie de medo e uma frialdade na barriga. Aproveitou imensamente aqueles momentos de fantasia.

Chegada à noitinha daquele dia depois de tudo, Tristão entrou em casa como se nada houvesse mudado, abriu o portão enferrujado que mais uma vez rangeu, os cachorros fizeram seus ladridos, olhou o correio, tirou os anúncios de supermercado e limpou as folhinhas de carvalho. Sentou tranqüilamente na varanda, Ana o beijou, mas desta vez com um beijo longo e quente, tirou seus os sapatos e ele espreguiçou-se. Não quis jantar, pois ficara comendo besteiras com a moça no shopping, a mulher não zangou, mas ficou preocupada. Ele, mesmo assim, sentou-se à mesa, mas na hora de falar do dia-a-dia pensou: o que dizer? Titubeou um pouco, mas acabou falando tudo sem poupar palavras. Ana chocou-se imensamente e triste retirou-se para o quarto. Ele nem deu importância, tratou logo de ir tomar um banho e para sua alegria a moça se banhava também, seu coração saltou e a sensação de poder o assaltou. Trepou na pia para se acomodar melhor e por uma fresta espiava com desejo ambicioso a nudez da moça. Mal podia se excitar, pois estava apreensivo para que ela não o visse. Tratou de acalmar-se, não podia desperdiçar aquela oportunidade, olhou para sua própria sombra na parede e ela parecia delirar de paixão. Estava louco, não, eram os devaneios que lhe dominavam, as visões que o desnorteavam. Pobre Tristão.

A moça distraída se lavava com calma, fazendo movimentos delicados, ora nos seios, ora na face. Prendeu os cabelos encaracolados e sua nua nuca se salientava para o desatino de Tristão que incontido solta uns gemidos. A moça reagindo ao som estranho olha para a janela, de um lado a outro procura o som, nada vê. Tristão se recompõem rapidamente e se oculta atrás da toalha na janela, observa a curiosidade da moça por uma brecha, ao fazer isso nota seus lábios lindos e molhados. Tristão agora é um escravo deste amor indistinguível, nasceu sem razão, é atraído feito um imã, tem consciência de que a moça é um amor impossível e até mesmo que uma relação sexual é difícil, mas é um escravo, está ligado a moça por uma sensibilidade pueril e inocente que o leva amá-la.

Moça empenha-se em lavar seus belíssimos cabelos, faz todo um ritual, enquanto Tristão enlouquecido começa agora a sentir um calor violento que lhe desce o peito. Moça vira de costas revelando toda sua sensualidade e escultura de corpo, seus glúteos perfeitos adornados por uma leve e meiga marca de sol desenham um triângulo dourado na pele morena cobiçada e os lombos, exatas torres banhadas pelo crepúsculo amarronzado de brilho ofuscado é a visão mais delirante, mais bela que um homem desejoso tem. A tara, a fascinação, o desvairo de Tristão chega ao clímax, o peito a estourar, o fogo a descer pelas veias do braço, a virilidade extrema, o coração a pulsar vertinosamente, vertigem, o sangue ferve-lhe e sente um forte golpear no coração um afrouxamento nas pernas.

Uma agonia! Uma última olhada. O desejo derradeiro.

Moça, longe, nem imagina que no altar da safadeza há um sacrifício ofertado à ela. Moça é a deidade idolatrada e louvada. Seu adorador dá umas últimas roncadas, louvor à deusa do cúpido desejo, ouve de si mesmo um último suspiro. Ana, no quarto surdo, ingenuamente chora seu verdugo, um pérfido que estertora e morre em sua última tarada gozada.

©Wagner Ortiz



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